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O invisível idioma

by Mia Couto
18 June 2020

O curandeiro Mário Mabasso desinfeta as mãos com gel de álcool antes de bater à porta do Ministério da Saúde. Atrás dele junta-se uma meia dúzia de homens e mulheres, todos usando máscaras feitas de capulana. Estão no centro da cidade de Maputo, a capital de Moçambique. A cidade, para eles, tem outro nome: xilunguíne, o lugar onde se vive como os brancos. Apresentam-se como representantes da Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique. Pertencem ao mundo da oralidade e sabem que, neste outro lado do mundo, o que vale é a palavra escrita. Por isso, o que vêm declarar está escrito numa folha de papel e diz o seguinte: “nós, os curandeiros e herbalistas, queremos pedir a vossa orientação perante esta nova doença. Os nossos antepassados, a quem consultamos para receber sabedorias, não sabem deste assunto, não nos podem ajudar”.

Mabasso enrosca os dedos em concha e bate palmas para saudar com respeito as individualidades. Entrega o papel ao Ministro e permanece de as mãos estendidas em sinal de rendição. Não sabe o que dizer, nem em português nem na sua língua materna, o xichangane. As vozes que o guiam moram na ancestralidade e ele gagueja quando quer falar com esses defuntos para lhes explicar o que se está a passar agora entre os viventes. Não há palavras na sua língua para dizer “vírus”, “assintomático”, “achatamento da curva”, “quarentena”. Não há na sua cultura tão gregária e corporal, algo que sugira confinamento ou distanciamento social.

Quando se despede das individualidades, Mabasso repete a saudação que toda a gente usa no país: “estamos juntos”. O Ministro sorri, condescendente e responde: “juntos, mas separados”. O curandeiro contém-se: quer confessar ao dirigente que tem cumprido a medida de afastamento das outras pessoas. Tem dificuldade, sim, em se afastar da sua própria sombra que é, desde há muito, a sua principal fonte de contaminação. As sombras são almas, viajam com vontade própria através dos corpos, através do tempo. A nossa alma pertence a todos os vivos, todos os mortos. Tudo isto o curandeiro queria dizer. Mas sabia que não seria escutado. Ou mais grave ainda, os doutores iriam sorrir, condescendentes.

Seguido pelos colegas, Mário Mabasso afasta-se pelo corredor e, à saída, volta a lavar as mãos num dispositivo com água e sabão para além de mergulhar os seus únicos sapatos numa bacia com desinfetante. Procede assim com estranheza: na sua casa, que é o seu consultório, os pacientes descalçam-se à entrada. Sem sapatos, os pés voltam a acariciar o chão da casa, ao primeiro território da infância.

Os curandeiros estão preocupados: os países ricos, onde vivem os brancos poderosos, estão tombando de joelhos perante uma criatura invisível. Se essa criatura não se descalçar à entrada das nações ricas, que força teremos nós, nações pobres, para a combater? E que doença é esta que tem um número no nome? E que moléstia que nos rouba o peito e viaja mais rápida que o vento?

Mal chegam à rua, ele e os seus companheiros esquecem-se das novas regras do mundo: juntam-se num só corpo, as mãos nas mãos, enquanto contemplam, frustrados, as imponentes instalações do Ministério de Saúde. O olhar deles traduz a mesma desamparada perplexidade que atravessa toda a humanidade. O próprio edifício do Ministério parece cabisbaixo: já esteve mais vivo e mais apetrechado antes das imposições para o emagrecimento do Estado que acompanharam a receita neoliberal, condição para que a economia moçambicana fosse “ajudada”. Houve tempos em que Moçambique apresentava um dos melhores sistemas de saúde pública de toda a África. A taxa de cobertura de vacina da BCG foi de quase 100 por cento. A saúde não era um luxo, não morava apenas nos bairros ricos da cidade. Esse modelo desmoronou. Aqui e em quase todo o mundo.

Na paragem do chapa, a delegação de curandeiros livra-se provisoriamente das máscaras. Reconquistam um rosto, tornam-se mais parecidos com quem sempre foram. Como se soubessem que a máscara nasceu nos palcos da Grécia antiga e servia para fazer ressoar a voz dos actores e, sobretudo, para construir, em cada caso, a alma de um personagem. Estes curandeiros são actores com uma guião às avessas: as máscaras despersonalizam-nos, substituem a sua identidade individual por uma inesperada entidade coletiva.

Não existe nestas pessoas nenhum sinal de sujeição ou menoridade. Aprenderam a não se envergonhar da sua crença em forças invisíveis. Os que moram na modernidade são mais pragmáticos: precisam de ver para crer. Mas nem sempre é assim. Todos os doutores do Ministério acreditam em entidades invisíveis: nenhum deles duvida forças do mercado, acreditam nos raios ultra-violetas, acreditam no poder radiações. No hemisfério norte a crença no invisível revela sabedoria. No Sul é uma prova de ignorância.

Talvez Mário Mabasso e os seus amigos tenham uma vantagem. Na sua cosmogonia não se encara com pânico a ininteligibilidade e a imprevisibilidade. A sabedoria que essas pessoas buscam não é aquela que assegura a posse ou o domínio da Natureza. Aliás, em nenhum das línguas de Moçambique, existe palavra para dizer “natureza”. A grande finalidade da sabedoria é o equilíbrio. A nova doença não é vista como uma invasão. Mas como um desequilíbrio. Esperam que um dia eles possam conversar com esse novo coronavírus. Talvez essa pequena criatura nos esteja agredindo simplesmente porque se sinta tão perdida como nós, os humanos.

Quando perdem um paciente, os curandeiros perguntam: esta pessoa morreu de quem? Não perguntam, como seria de esperar, “morreu de quê?”. “Morrer de alguém” é algo que tem todo o sentido num mundo em que existe uma outra fronteira entre a Vida e a Morte, entre as coisas e as criaturas portadores de alma. Nesse mundo tudo está vivo. Nesse mundo estão ausentes as dualidades entre corpo e alma, entre somático e psicológico e entre matéria e espírito. A doença, nessa outra lógica, é pensada de outra maneira. A doença não é um “quê”. É um “quem”. Não exprime apenas uma condição física, mas um duelo de vontades. Na tradição chamada de ocidental, o médico lê sinais. O terapeuta da tradição africana lê símbolos. Ele é um tradutor de silêncios. Na tradição ocidental, o médico assume que trata um doente. O terapeuta africano coloca em diálogo as forças que previnem a doença e trazem a cura. O curandeiro é um afinador de silêncios.

No caso moçambicano, as pessoas têm um modo particular de se queixar quando em sofrimento. Alguém que sente dores diz assim: “estou a sentir o corpo”. O que a pessoa está dizer é que o corpo fala com ela. E que o seu corpo o está alertando que ele está em dissonância com o mundo. O estado de saúde é determinado não tanto por hormonas mas por harmonias. Essas harmonias são criadas em transações entre o mundo dos vivos e dos mortos. Dito de outro modo, o corpo humano não cabe dentro da sua própria pele. Nós existimos dentro e fora dos nossos limites corporais, nós somos uma agência de viagens entre o corpo, a casa e o mundo.

Os curandeiros atravessam agora as largas avenidas de asfalto. Vão sentam-se de forma espaçada no autocarro. Não partilha de lugares: cada um ocupa um assento inteiro. Por isso, são obrigados a falar em voz alta. Um deles pergunta aos outros se entenderam quando o ministro falou do pangolim como o possível causador desta doença. Todos confirmam em partilhado silêncio. Os chineses deviam ter-nos chamado quando receberam o halakavuma, disse um deles. Os halakavuma é como são chamados os pangolins nos idiomas do Sul de Moçambique. Reina a crença que esse animal é um carteiro dos deuses. Desce dos céus trazendo mensagens que só podem ser entregues aos curandeiros e aos reis. Essas mensagens falam quase sempre de desgraça, falam de secas, de fome, de epidemias. Neste caso, confirmou-se o último dos veredictos.

Mario Mabasso está aliviado. Pelo menos disse ao Ministro que se devia proibir esse roubo, esse comércio ilegal que faz com aqueles mensageiros divinos vão parar à China. Uma das curandeiras, a que está sentada no assento da frente, está zangada. Os que roubam e vendem os pangolins desobedecem aos mandamentos mais antigos: não se pode tocar nesses animais que estão munidos de escamas exatamente para esconder os segredos que lhes foram entregues pelos deuses. A interdição é ainda mais rigorosa: não se pode nem sequer olhar de frente para os tímidos e calados mensageiros. Tudo isso foi violado, os deuses estão zangados com a violação da correspondência.

Os curandeiros regressam a suas casas, que são sempre distantes da cidade de cimento. Pela primeira vez, eles sentem que os bairros ricos e os bairros pobres estão juntos num mesmo sentimento: o medo. Pode haver muros que separam os privilegiados dos deserdados. Não há muro, porém, que separe este medo. Ao longo da estrada, Mário Mabasso vai espreitando a terra extensa de areia vermelha. A estrada de asfalto ficou lá atrás, agora os caminhos são feitos de areia que se estende a perder de vista. O curandeiro olha esse chão infinito é pensa: este é o céu onde moram os antepassados. E é nesse chão que os pangolins abrem abrigos para descansar das suas viagens entre poeiras e nuvens.

Por fim, Mário Mabasso atravessa o quintal da sua casa e ajoelha-se para tocar a terra. Procede como os halakavuma: os dedos, pousados sobre a areia, escutam. Deixa que a mão se solte do seu corpo para que, como uma canoa num rio de silêncio, ela vá acalmar o invisível vírus que fez parar o planeta.

 

 

Illustration by Isuri

About the Author

Mia Couto

Mia Couto was born in 1955 in Beira, Sofala province, Mozambique. He lived there until he was 17, when he went to Lourenço Marques to study Medicine. He interrupted the course to start a journalistic career that went on till 1985. On his own initiative, he returned to university to study biology, graduating in 1989. […]

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